Da Década!

Dom Malícia

Posted in Literatura by Tiago Lopes on junho 6, 2019

Compreensão de malícia demanda experiência de vida, por isso Dom Casmurro é tão mais potente quando sorvido pós-30. É a malícia de José Dias sobre a relação até então infantil de Bento com Capitolina (Maria Capitolina!!!! q alcunha) que planta a ideia de paixão entre os dois na cabeça de Bento. É a malícia que dá corda pra essa história. A palavra “malícia” também ancora vários aforismos/citações potentes do livro:

“Lembravam-me episódios vagos e remotos, palavras, encontros e incidentes, tudo em que a minha cegueira não pôs malícia, e a que faltou o meu velho ciúme.”

“Jesus, filho de Sirach, se soubesse dos meus primeiros ciúmes, dir-me-ia, como no seu cap. IX, vers. 1: «Não tenhas ciúmes de tua mulher para que ela não se meta a enganar-te com a malícia que aprender de ti.»”

A palavra “malícia” tá sempre próxima de “ciúme” nessas páginas, né? Né.

Daí que a outra coisa tão comum em Dom Casmurro quanto a ideia de sacanagem é a morte. Como o nosso narrador sobreviveu a quase todo o elenco (menos à Sancha, sempre “menos a Sancha” com esse livro, ela é o Quincas Borba de Dom Casmurro, uma personagem tão vital quanto transparente), ele nos conta como recebeu a notícia da morte de cada um deles. Lá pelo quinto final do livro, Bento já havia sido informado do óbito de seis pessoas. Outra contagem tão alta de defunto? Num Shakespeare, sempre tão citado por todo o Dom Casmurro. Só que a tragédia escrita por Machado de Assis aqui advém só do acaso e da passagem do tempo, sem gestos hiperdramáticos e ultraviolentos.

Acima dos motivos banais que provocaram mortes de pessoas tão próximas da origem da narrativa, há também o próprio descaso do narrador para com a grande maioria dos mortos. Relembrar a reação de Bento para cada morte é o melhor labirinto para chegar no centro da alma desse otário.

Se essas reações forem colocadas ao longo da escala que mede a empatia do Bento para com a morte de seus pares, com os extremos “não sentiu o baque” e “sentiu até demais”, a morte de Capitu tá na ponta do “não sentiu” e a do Escobar, bem, os dados não mentem:

Além da morte do Escobar ter ocupado a narrativa de Bento por 11 páginas (a de sua mãe ocupou duas; a de Capitu, duas linhas) também impulsionou a passagem mais surreal de Dom Casmurro, quando Bento abandona o carro saindo do enterro de Escobar para andar sozinho e organizar as ideias, vê um barbeiro tocando uma rabeca, para, o barbeiro se empolga com a atenção do Bento e ignora clientes para continuar tocando. A única morte próxima de Bento que ele tentou processar por completo – da presença no enterro, passando pela declamação de um discurso, até o pós-evento, num momento aparentemente banal e carregado de simbolismo – foi a do Escobar.

Quando se cruza essa passagem do livro, as insinuações entre os dois se concretizam por meio do processamento da perda. A outra parte genuinamente romântica da narrativa acontece na noite de núpcias de Bento e Capitu, um dos poucos trechos de ficção que conheço que consegue equilibrar tão bem um tesão óbvio dos personagens com a necessidade de manter a escrita gostosa & erudita. A memória carnal que Bento tinha de Capitu era a mais duradoura de sua relação com ela (os momentos mais romanceados entre os dois são todos carnais: o primeiro beijo, a primeira noite). Já a lembrança que Bento tem de Escobar possui fontes diversas, complexas, sempre sugeridas: o companheirismo constante, uma apalpada de músculos, apertos de mãos de cinco minutos, o fato da foto de Escobar (explorada numa descrição minuciosa) estar ao lado da foto de sua mãe, a quem Bento chama de santa, numa ligação indireta que Bento faz entre Escobar e o divino. Uhn.